domingo, 12 de abril de 2020

Introdução ao Logus - Primeira Parte

                                                                    ***

É engraçado como uma coisa simples como o toque de um telefone pode assim de repente se tornar algo tão nocivo pra tua saúde mental. Me lembra um fenômeno descrito na psicologia animal. “Resposta de freezing condicionado”. Aprendi na televisão. Quando você passa a associar um estímulo normal a alguma coisa ruim. Como dar um choque elétrico num ratinho toda vez que tocar o som de uma buzina. Eu sou o rato. O telefone é minha buzina. E eles são o choque.
Ainda lembro a última vez em que ouvi o toque de um telefone sem que meu coração parasse. Sem que meus olhos revirassem nas órbitas e um suor gelado escorresse pela minha testa. Sem que todos os cabelos do meu corpo se arrepiassem. Começando pelo antebraço e subindo devagar ate as costas e os pelinhos da minha nuca rala. Como se um espírito vestido de branco sentado ao pé da minha cama suspirasse alguma profanação no pé da minha orelha. Era manhã. Não consigo lembrar o ano. Muito menos o mês. A noção de tempo se tornou uma nebulosa difícil de dissipar na minha mente fragilizada. Ainda mais aqui encerrado neste quarto pra gente doida. Era manhã. Eu era uma pessoa normal. Um cidadão de bem cheio de boas intenções, desses que o Inferno está tão cheio. Tinha emprego. Amigos. Uma noiva. E assim o telefone começou a tocar. E eles chegaram. E tiraram tudo de mim. Só deixaram pra trás esse pedaço de carne remoída semi morta incapaz de manter um diálogo com outro ser humano. Que só pode se comunicar por cartas como esta que vos escrevo agora. Talvez seja a última. Era manhã. Provavelmente de uma segunda-feira. Porque eu andava morto de sono. E só fico assim segunda de manhã. O telefone tocou quando eu tinha a mão na maçaneta pra sair atrasado pro trabalho. Antes não tivesse atendido. Antes não tivesse escutado. Se tivesse saído cinco minutos antes nunca teria atendido ao primeiro chamado. E talvez ainda fosse aquela pessoa normal cidadão de bem cheio de boas intenções que o Inferno está cheio.
Mas eu atendi.
E agora estou aqui. Alô? Sem resposta. Só a respiração pastosa do outro lado. Asquerosa. Pesada. Carregada de uma raiva contida que beirava a insanidade. Juro que podia sentir o individuo respirando do meu lado. Alô?? Pensei que fosse trote. Desliguei. Outro toque. Atendi nervoso. Porra quem é? Dessa vez me chamaram pelo nome completo. A respiração agora mais contida. Transparecia uma espécie de felicidade insana dessas que você escuta no tom dos apresentadores de programa de televisão. Sim? Sou eu. O senhor foi selecionado. Selecionado pra quê? E a resposta absurda: Pra fazer parte da comissão atuante do Logus. Minha paciência já andava curta. Desliguei sem pensar. O nome permaneceu na minha cabeça. Que diabo era Logus ? Não importa. De alguma forma tinha a sensação de já ter escutado o nome. Como uma canção de ninar chata que cantavam pra você na infância. O nome estava lá desde sempre. Enterrado nas profundezas do meu cérebro. Mas eu nunca havia pensado nele. Ou talvez sim? Como se fosse o número de telefone de uma ex que você já esqueceu há duas décadas. E agora volta a tona depois que este louco mencionou pelo telefone. Sai de novo pro trabalho. O telefone tocou uma vez mais. Eu não atendi.
Pela última vez deixei de atender ao telefone. Uma demonstração avassaladora do tal “freezing condicionado”.
                                               

                 ***

Lembro pouco depois disso. Entrar no carro. Meter a chave na ignição. E o grito. Nunca havia visto alguém ser morto até aquele momento. Sempre morei na Zona Sul do Rio. Não é normal ver gente morrer na rua assim de bobeira por aqui. Muito menos de forma violenta. Tinha um senhora que morava no apartamento abaixo do meu. Ela sempre ia regar um jardinzinho do condomínio em que morávamos na mesma hora em que eu saía de carro pra trabalhar. Ela estava lá como todas manhãs. Com seu vestido florido de velha da Zona Sul. Sempre com o mesmo sorriso de quem acha que vai viver pra sempre só porque tem o cu cheio de dinheiro e uma penca de netos loiros pra manter o legado do seu nome. Dei bom dia antes de entrar no carro. Ela me deu uma resposta estranha. Não entendi na primeira vez. Quando botei a chave na ignição percebi os dois sujeitos que estavam atrás dela. Perto demais. Tarde demais. Foi a covardia mais brutal que já testemunhei. Até aquele momento pelo menos.
Um dos sujeitos tomou a velha por trás num mata-leão. Devia ter uns dois metros. Uma barriga avantajada mas os braços fortes como de um gorila. Usava óculos. Se você encontra um sujeito dessas na rua vai jurar que é um PM aposentado. Um cara normal andando no centro do Rio indo tomar uma cerveja ou passar na casa de massagens. Você não espera que um sujeito desse vai tomar uma velha por trás daquele jeito. E o outro. O outro era pior. Porque não devia ter nem vinte anos. Magrelo, alargador de orelhas, cabelo liso escorrendo na testa. Um moleque que devia estar prestando a merda do ENEM ou trabalhando em uma loja de roupa do shopping. Enquanto o gorila agarrava a velha, o moleque puxou uma faca do bolso do jeans. Não era uma faca qualquer. Parecia uma arma saída de um filme medieval da sessão da tarde. Com um movimento, o moleque abriu a barriga da velha de um lado ao outro. Como se fosse um sorriso largo vermelho esvoaçando intestinos e merda por todo jardim do condomínio. A faca era boa. O corte deve ter demorado uns dois segundos pra ser feito. A velha guinchava como um porco o tempo todo. Até cair no chão com aquela expressão que nunca mais vai parar de assombrar meus sonhos. Tudo ficou turvo pra mim. Lembro de ter tentado abrir a porta do carro mas não deu tempo pra evitar meu café da manhã atingir o painel com força sujando a poltrona e meu terno. Os dois vieram na minha direção. O grandalhão levantou a minha cabeça e o moleque me disse algo que não pude assimilar na hora. Nunca mais ignore um chamado do Logus. Antes mesmo do grandalhão enfiar um direto na minha boca eu já tinha desmaiado. De puro terror.

                                                                  ***






segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O beijo

Carlos virou o rosto no instinto. Não vira! Virou. Estrondo. Cheiro de pólvora. Escuridão.
Cintia corria atrasada pro trabalho. Pena que o Corsa vinha com uma pressa maior ainda. A dor do choque veio e sumiu em uma fração de segundo apressado.
Antônio saiu do bar às cinco. Se despediu dos colegas e foi andando em linha não tão reta na direção do bueiro aberto. Nem doeu.
Outro Antônio levantou pra pegar mais uma gelada. Deve ter levantado rápido demais porque não manteve o equilíbrio e desabou ali mesmo no tapete da sala. Sem ar pra emitir som ficou ali deitado babando enquanto a dor lacerante no peito ia lenta devorando seu braço esquerdo.
Isadora completou seis aninhos de idade hoje. A mãe virou por um instante, perdida nos preparativos na festinha da piscina. Foi o suficiente pra pequena mergulhar pra sempre na curiosidade da profundeza azul. 

Jean ficou ali olhando pra imensidão da Baía por uma boa meia hora. Os bombeiros vinham com cautela tentando conversar. Mas ele não queria conversa. Afinal o que ele queria mesmo? Já nem sabia mais. Quando resolveu dar a mão ao bombeiro, um pé de vento tirou o equilíbrio dos dois. Quem diria que a água vira uma parede de concreto naquela velocidade.
Vinicius tirou a mão do volante rapidinho pra responder o Whatssapp. O clarão do farol do caminhão foi a ultima coisa que chegou a sua retina antes das ferragens atravessa-la.
Samir ficou sem reação após o sacrifício humano que acabara de realizar. Esperava algo grande como tempestades, ventanias sobrenaturais e coisas assim. Mas nada sucedeu. Juntou os artefatos espalhados no chão do cemitério e se preparava pra ir. A mão em seu calcanhar puxou-o violentamente. A Criatura havia chegado. Cheia de gratidão e sede.
Litia evitava passar pela praça ao voltar do trabalho, apesar de ser o caminho mais rápido. Sempre juntava um bando de homem no bar da esquina pra mexer com ela. Contrariada, atravessou a rua pra contornar a praça e chegar em casa. Do beco escuro, um braço forte a arrastou em sua direção. Tapou sua boca e arrancou sua saia. O corpo de Litia sobreviveu. Mas o interior morreu e Litia acabou, sem querer, entrando nesta história.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sobre a Normalidade

As sirenes são meu despertador. Lembro-me da primeira vez em que as escutei. Há mais de três anos. Eu era um homem diferente então. Um homem normal. Eu era a própria definição de Normalidade. Normalidade.  Um conceito engraçado. Contra-intuitivo. Normalidade sugere alguma coisa estática. Parada no tempo e no espaço. Mas não é. A normalidade pode ser extremamente mutável. Mas tem uma regra pra continuar sendo chamada Normalidade: tem que mudar devagar.
Devagar o bastante pra passar despercebida por todo mundo. Sai de um estado primário de Estranheza pra devagarinho tomar uma nova forma. E um belo dia você acorda e lá está ela. Aquela Estranheza toda de repente desaparece. Você se acostuma com ela. Você e todo mundo aceitam ela. E num passe de mágica, a Estranheza se torna a Normalidade. A Nova Regra. A nova Ordem.
Assim foi com o Toque de Recolher. A primeira vez que ele tocou foi estranho. Na centésima vez foi normal. Assim foi comigo. A primeira vez que matei alguém, foi estranho. Depois, foi normal. Porque se não for normal... Será o meu fim.
Quinto toque das sirenes. Só faltam mais dois. Já começo a ficar impaciente. Pelas frestas das persianas vejo as pessoas correndo pra dentro de suas casas. Acendo meu cigarro. Noite de lua cheia. As pestes ficam mais fracas nessa época. Pelo menos é o que dizem. Não tenho muita certeza se acredito. Mas me conforta um pouco imaginar que posso estar tendo alguma vantagem em relação a elas.  Falta pouco agora. Hoje vai ser uma noite longa. O esquema foi repassado mais de mil vezes. Por cartas e sussurros. São as únicas formas de comunicação segura hoje em dia. Quase as únicas formas possíveis. Nenhuma máquina funciona direito desde que elas vieram. Sinto falta do meu tablet.
O sétimo e último toque das sirenes. É isso. Chegou a hora. Os últimos raios de sol se despedem no horizonte. Rezo um Pai-nosso. Só por costume. Pelos velhos tempos. Pela Normalidade.
Pego as armas e o casaco. Reconto as balas. Bombas caseiras. Checadas. Repasso o plano mentalmente. Pela última vez. Tomar o velho elevador pro subsolo. De lá seguir pelos esgotos onde devo encontrar os outros. Devem ser vinte homens. Vinte filhas da puta que não tem nada mais a perder. Tirando a própria carcaça. Vinte corações rebeldes que não aceitam as coisas como estão. Vinte inimigos da Normalidade.
Antes de tomar o elevador, dou uma última olhada pela janela. Ao longe, vejo mantos brancos voando na direção da Prefeitura. Vindos de todas as direções. Os berros agourentos ecoando pelos prédios. É verdade então. Vai ser hoje. Tento resistir ao impulso extremamente normal de pegar os binóculos para contemplar. Tenho medo de fraquejar se olhar mais de perto. Olho mesmo assim. Uma nuvem branca composta de trezentas ou trezentas e cinquenta delas voando no céu que mal ficou escuro. Nunca vi tantas ao mesmo tempo. Uma delas olha na minha direção. Com aquela cara podre. Os olhos mais velhos que o Tempo. Como se adivinhasse o que eu vou fazer.
Largo os binóculos e vomito com força no chão. Maldita Normalidade. Sempre te perturba quando você menos precisa dela. Puxo a fotografia do bolso. Lá está. Minha pequenina sorrindo. Eterna e intocável. A salvo. Pelo menos no meu bolso. Limpo o resto de vômito da boca. Forças revigoradas. Faça por ela. Lute por ela. Morra por ela. Porra. Mate por ela. Mate quantas puder por ela. As portas do elevador se fecham devagar atrás de mim. Fecho os olhos e acaricio as armas. A imagem de minha pequena ainda impressa em minhas retinas. Dando-me forças. Dando-me combustível pra fazer o que for preciso. Quer dizer, é o que se espera de um pai normal, não é?
Talvez tenha me precipitado. A Normalidade pode não ser tão ruim assim afinal.



terça-feira, 1 de abril de 2014

O esquerdista

O tapa na cara me trouxe de volta. Pra onde? Você me pergunta. Depois do terceiro dia eles me convenceram. Pro inferno. Eu passeava pelas camadas do inferno entre meus curtos períodos de sono e a forcada vigília. Ao invés de Dante, meu condutor era o diabo. O diabo vestia uniforme, bota e óculos escuros. E sempre fazia questão de me acordar. Os ajudantes do diabo gritavam pra tentar me fazer falar alguma coisa que não tenho mais a capacidade de compreender.
O cheiro de carne queimada é quase gostoso. Não lembro quando foi a última vez que me deram de comer. Parece uma eternidade. Não tenho certeza se lembro do gosto de comida alguma. Mas do cheiro sim. Churrasquinho. Bem passado.
Já cheguei num ponto onde não sinto mais dor. Não sinto nada. Nem o tempo passando em segundos angustiantes pontuados pelos meus gritos. No começo, achei que fosse mais alguém gritando do quarto ao lado. Pode ter sido só uma impressão. Não e possível que alguém cometa tamanho atentado à vida humana no mesmo dia. Ao mesmo tempo. No quarto ao lado. Agora estou convencido de que sou eu mesmo. Sou eu quem grita. Embora não sinta a dolorosa vibração de minhas cordas vocais. Embora meus sentidos embaralhados não saibam mais discernir ou assimilar nada da realidade.
A cada choque uma nova lembrança. O dia em que entrei pra faculdade de Direito. O dia em que me filiei ao partido. O dia em que minha filha nasceu. A cada nova corrente que atravessava meu corpo como uma onda…Mais uma lembrança parecia se esgueirar de mim. Pra sempre.
Meus olhos reviravam nas órbitas e tinha a certeza de que podia enxergar o lado oposto. Pra dentro do meu cérebro. Eles riam de mim. O diabo e seus ajudantes. Riam e cuspiam e batiam. Com suas botas e cassetetes. Eles, burros que eram não percebiam. Eu não sentia mais. Eu não sentia dor. Eu era a dor.
Um deles agarrou meu braço enquanto o outro me segurava com um mata-leão. Meus olhos revirados tentaram fixar o novo foco de sua sandice. Minha mão. Ou a coisa que eu chamava de mão. Costumava usar para tocar violão. Um deles puxou um alicate e o fixou bem embaixo da unha. Pressionou e puxou uma vez. Gritei. Ou alguém gritou. Não tenho certeza mais. Não doeu. Já disse. Não sinto mais tal coisa. Gritei pelo horror da visão. Aquela coisa que fazia parte de mim tirada assim. Sob gritos inteligíveis e mais socos na boca.
Mais interrogações. Mesmo que pudesse compreender alguma palavra, não poderia responder. Não tinha mais voz. Tenho a estranha sensação de me ver de cima. Amarrado àquela cadeira de metal. Um rosto desfigurado. O pênis para fora das calças com um pedaço de arame enfiado no buraco por onde costumava urinar. O diabo cansou da brincadeira. Ou se convenceu de que não sei (ou não posso) dar as respostas certas as suas perguntas sem fim.
Virou de repente. Encostou o revólver na minha têmpora e atirou uma vez. O jorro de sangue e miolos sujou seu uniforme. Como sei disso? Já não sei explicar. Só sei que apesar de contemplar meu corpo caído sendo arrastado como um boneco pelos outros soldados…Ainda posso ouvir o som de gritos. De muitos e muitos outros gritos. Vinham dos quartos ao lado, afinal.
O inferno é um lugar horrível.



domingo, 16 de março de 2014

Perfume - Parte Três

          Decidi tirar uns dias de folga do trabalho. Liguei e o chefe se limitou a desejar um "melhora logo e volta que eu preciso de você". Não sei o que deu nesse cara. Talvez estivesse com pena de mim. Não tenho certeza de quantas pílulas tomei escondido de mamãe.
          Talvez tenha exagerado na dose dessa vez. A sensação de estupor se apoderou de mim. Como se estivesse num carrossel. Rodando devagar. Nos poucos momentos em que mantinha os olhos abertos via tudo borrado. Como num sonho. Mamãe encheu minha antiga cama de solteiro com travesseiros felpudos que eu adorava quando era criança. Pelo cheiro de mofo diria que a velha não os lavou desde que saí de casa. Mas tudo bem. Pelo menos teve o bom senso de abrir todas as janelas da casa pra renovar o ar.Era bom ter alguém por perto de novo. Cuidando de mim. Se preocupando. Fazendo meu almoço.
          Pela primeira vez em meses consegui não pensar no meu luto. Consegui me entregar àquele sono induzido. Sem sonhos. Pelo que me lembro. Dizem que a gente sonha toda noite. Mas só lembra de vez em quando. Talvez isso explique porque sempre acordo com a sensação de ter chorado por horas a fio. Talvez eu continue sonhando com a minha angústia. Mas pelo menos meu consciente não está mais prestando atenção.
          Mamãe fica fora boa parte do dia. Mas aparece religiosamente na hora das refeições pra me obrigar a comer alguma coisa. Você esta um esqueleto. Ela insiste. E me empurra alguma gororoba que inventou de preparar na cozinha. Fica ali divagando sobre as eleições, as últimas intrigas da Paróquia e o preço do pão. Como sempre. Eu faço de conta que escuto olhando de relance pra alguma novela reprisada na tevê.
          Pendurada na parede do corredor, uma velha foto de papai. Sempre fardado. Servira ao Exército e me batia na bunda com uma vara de pescar algumas vezes por semana. Algumas vezes com motivo. Mas na maioria das vezes não. Morrera jovem no aflorar de seus quarenta anos. Minha idade hoje. Cirrose. Nunca senti sua falta.
          Por causa dele jurei que nunca colocaria uma gota de álcool na boca quando crescesse. Quebrei a promessa aos dezenove anos. O motivo? Diana. Já era apaixonado por ela desde que ela se mudou pro Méier, mas na época ela decidira namorar um idiota lá do bairro. Quando eu soube, acabei sozinho com duas garrafas de cerveja. Veja só. Vomitei tanto que mamãe pensou que fosse morrer. Quando Diana soube, desmanchou o namoro com o idiota e veio me procurar. Nunca mais nos separamos.
          Meu estupor não me impedia de tomar mais pílulas. Os eventos da noite anterior haviam sido quase apagados de minha mente. Mas alguma parte do fundo da minha alma me lembrava de tomar mais pílulas. Pra ter certeza absoluta de que não sentiria o perfume novamente. Foi neste estado que passei pelos dois primeiros dias. Só era interrompido pelo frio que entrava pelas janelas abertas a noite e por mamãe que resolvera entrar no quarto a cada cinco minutos na segunda tarde de minha estadia.
          Não chegava a vê-la de fato. De olhos fechados, ouvia seus passos pesados no quarto de um lado para o outro. Uma vez ou talvez duas, pusera a mão em minha testa e afagara meus cabelos molhados de suor. A mão estava tão gelada que eu abria acordava sobressaltado. Mas quando abria meus olhos, ela já havia ido embora e só me deparava com a velha foto de papai no corredor. As pílulas estavam mesmo me deixando lento. Mesmo assim, nunca esquecia de tomá-las. Especialmente à noite. Especialmente quando o velho relógio cuco da sala marcava vinte e três horas. Como se receasse sentir o perfume. Eu precisava não sentir o perfume.
          E não o senti. Eu acho. Assim como o fato de não nos lembrarmos de nossos sonhos não indicar que não tenhamos sonhamos… Talvez o fato de não me lembrar de ter sentido o cheiro não queira dizer que não o tivesse sentido de fato...
          Naquelas três noites que passei na casa de mamãe não me lembro de ter sentido cheiro algum. Só o de mofo e de feijão queimado. Na terceira noite, antes de me deitar pra dormir, perguntei o porquê do seu rosto tão preocupado. Afinal de contas, eu já me sentia bem melhor. Até pensava em trabalhar no dia seguinte. A velha me acompanhava de um lado pro outro no quarto. Os olhos fundos de olheiras. Quase arregalados. Era uma velha forte. Firme no andar. Firme no falar. Apesar de seu estado de constante preocupação, nunca demonstrava sinais de abatimento como os que mostrava essa manhã.
          Ela não me respondeu. Insisti. Ainda sem dizer nada, a velha passou os olhos pelas janelas e portas todas escancarados. Foi a primeira vez que percebi que estava tudo aberto, apesar do dia friorento de julho.
          _É pra ver se o cheiro vai embora.
          _Qual cheiro mãe?
          _Esse cheiro de perfume. - Foi sua resposta.
          Os pêlos da minha nuca arrepiaram. Nunca falei sobre o perfume com a velha. Olhei sobressaltado para os lados como procurando o cadáver perfumado de Diana. Toda sensação de descanso dos últimos três dias tinha ido embora de repente. Eram nove e quarenta da noite.
           Mamãe me olha ainda mais preocupada. Tenta balbuciar alguma coisa.
          _Está acontecendo com você também, não está?
          _O quê mulher?
          Lentamente ela se volta pra foto de papai no corredor.
          _Acontecendo o que? – repeti.
          _Depois que ele se foi... Aconteceu comigo também.
          _O que? - Eu grito.
          _Anos depois de ele morrer... -A velha se volta pra mim sentando lentamente na cama. Uma cara de desespero que eu nunca vi.
          _Eu ainda sentia o cheiro da cachaça favorita dele toda a noite... - respondeu com os olhos vidrados na fotografia.
          Caio sentado na cama junto à velha. Minhas pernas não têm mais forças. Meus olhos agora colados no retrato da parede também. Sem me voltar pergunto a ela com a voz fraca:
          _Por quanto tempo você sentiu o cheiro?
          Lentamente, ela se volta pra mim. E num sussurro conclui:
          _Filho... Eu nunca deixei de sentir.


                                                                    --

                                                                                                                                                        


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Sétimo Dia (Perspectiva de um Imbecil da Era Digital)

No primeiro dia a lua amanheceu vermelha. Ninguém deu muita bola pra isso. Era dia de jogo do Mengão. Os românticos abusaram do Instagram. Os evangélicos se recolheram em vigília. O jornal falou que era um fenômeno meteorológico qualquer. No Facebook, culparam os petralhas. O Meia Hora fez uma capa engraçada sobre o assunto, mas já esqueci a piada...
No segundo dia, vieram os gafanhotos. Ou o que quer que fossem aqueles insetos imensos pegajosos que se juntavam numa única nuvem negra devorando plantações. Uns amigos biólogos pegaram alguns para analisar. Espécie nova. Resistente. Falaram até em sequenciar o genoma, sei lá o que é isso. Mas ia ficar caro demais, parece. O Youtube bombava com vídeos das nuvens negras. Antes de dormir vi um vídeo no Japão que mostrava uma nuvem passando numa rua cheia de gente e não deixando nada pra trás. Só um monte de poças de sangue. Fake.
No terceiro dia, veio a Coceira. Pegou quase todo mundo. Rico, pobre, político, pai de família. Artista, puta, cientista, esquerdista, vagabundo,até Black Block. Não poupou ninguém. Não é aquela coceirinha gostosa que dá e passa. É profunda. Persistente. Insaciável. Visceral. As pessoas na rua andam esfoladas, sempre sangrando. Você continua coçando mesmo depois da pele ter saído. Mesmo quando já dá pra ver um branquinho do osso aparecendo ali no braço. Minha sorte é que sempre soube controlar coceira. Mesmo assim é enlouquecedora. Amarrei minhas mãos e tô digitando com o nariz.
No quarto dia, papai apareceu de surpresa no quarto com um cabo de vassoura e acertou minha cabeça bem forte. Levantei tonto e sai correndo. Ele veio atrás de mim com aquela cara assassina, a pele em carne viva, um gafanhoto preso no cabelo. Empurrei o velho da escada e só sosseguei de novo quando vi o pescoço torcido. Mamãe não fez nada. Não dava. Ficava o dia todo mergulhada na banheira cheia de água com gelo pra aliviar a pele em carne viva. Entrei no Twitter e descobri que não era o único. Os trends: #PapaiBolado ; #FreudExPliCa; #QuasemorrimeuDeus ; #amoTestamento ; #ToRyca.
No quinto dia não sei o que aconteceu. O Facebook saiu do ar. Arrancaram a cabeça do William Bonner ao vivo. Tô perdido no tempo estocando comida, beque e seda no quarto trancado. Ao longe só consigo ouvir as explosões bizarras e aviões passando rasantes. Os vizinhos tão saindo de máscara de gás na rua. Pensei que fosse manifestação, mas acho que é coisa pior, hein. A coceira tá me enlouquecendo. Preciso acender dez beques por dia pra esquecer ela. O cheiro do corpo de papai tá começando a me incomodar.
No sexto dia acordei com meu quarto balançando. O mundo chacoalhou por uns dez minutos. A casa ficou torta. Levantei e fui lavar o rosto. A água saiu verde da bica. O cheiro parecia vômito de ressaca; só que pior. Não tem mais água em lugar nenhum, parece. Mamãe continua na banheira verde com os olhos parados fixos no espelho. O rosto é uma bolha de sangue onde só se vê os olhos. Coloquei mais gelo pra ela e disse que tava indo embora de casa. Ela só virou a cara de zumbi pra mim e acenou. Desci as escadas, pulei o corpo inerte e ganhei a rua. O céu tinha mudado de cor. Um azul meio esverdeado demais. Era até bonito. Mas se você prestasse atenção... Aquelas cores geladas lembravam a morte. Mas nem precisava. A morte estava por toda parte. Gente sanguinolenta se arrastando pela rua. Um cheiro forte esquisito deixava o ar nauseabundo, pesado. O chão sacudia de quando em quando. Uma rachadura esquisita tinha brotado no asfalto no meio da São Clemente. Andei no sentido da praia me escondendo de um grupo de motoqueiros sangrentos que passavam saqueando tudo, até mulher.
No sétimo dia me enfiei num buraco escuro entre dois prédios velhos em Copa. Aqui só tem espaço pra mim e o Ipad. E pra um cachorro magro que fica lambendo meus braços em carne viva. A bateria tá meio baixa. Resolvi criar um blog pra relatar essa última semana. Pena que não pega mais WiFi. Mas quando voltar eu posto isso tudo. A galera vai curtir. Escondido aqui, andei pensando na vida,sabe. Acho que devia ter feito mais coisas. De repente escrito mais. É até legal esse negócio de escrever. Só consigo escutar gritos desesperados vindo da rua. O chão continua tremendo e a fome tá de matar. Aqui dá par ver um pedacinho do céu verde ainda. Alguma coisa passou por ele fazendo sombra. Pensei que fosse um avião. Mas a coisa rugiu. Rugiu mesmo, tipo um leão. Tão alto que uma casa na frente tombou de vez. Tô preocupado com meus amigos do Face. E com a galera da academia. Pensando agora, tô há mais de uma semana sem malhar. Saco. O rugido voltou, mais alto dessa vez. Tô meio bolado. Será que vão consertar tudo antes da Copa? Tomara que sim.


domingo, 26 de maio de 2013

O Cheiro - Parte Um

Hoje outro moleque sumiu da rua.  Um mais magrinho. Ficava sempre lá jogado no canto ou correndo de um lado pro outro com o copo de Guaravita na mão. Falando sozinho. Gesticulava muito. Quase morria atropelado umas vinte vezes por dia. Era assim que ele vivia.
Eu o chamava de Cartolinha. Alguma coisa no jeito dele rir lembrava o velho poeta. Eu faço isso com frequência. Dou nome pra eles. Pode parecer loucura e talvez seja. Mas me dá uma sensação egoísta de bem estar, sabe? Se eu dou nome a eles, eles se tornam um pouco mais reais. Um pouco assim mais humanos, tá me entendendo? Se eu dou nome pra eles, eu garanto algum direito qualquer que eles não tenham tido nunca na vida. Um direito assim de...existir. De ser chamado e tratado que nem gente.
E hoje esse também sumiu da rua. Semana passada foram dois. O Acerola que lembrava o molequinho do “Cidade de Deus” e o Tiaguinho que era a cara do filho de dona Rosineide. Mês passado foram mais uns cinco. O Sem-Dente, o Barriga, O Encrenqueiro, a Ana Maria e a Capitu. Todos naquela fase doida que todo mundo passa entre o final da infância e o começo da adolescência. Onze, doze, quinze anos.Um inferno. Mesmo quando não te negam casa, comida nem roupa lavada.
Mesmo quando o craque não está lá presente carcomendo a sua alma. Inebriando a sua consciência. Transportando os seus medos mais profundos pra algum lugar escuro lá no fundo da tua mente.Fazendo você perder a trilha que te guiava pra você mesmo. Já estive lá. Não é o tipo de lugar que gostaria de voltar. Boa parte do tempo pelo menos. Esta noite, após as duras constatações as quais meus velhos olhos foram guiados, não sei mais. Gostaria de esquecer. De nunca ter visto. De não saber. De nunca ter dado nome a nenhum deles. De nunca ter me importado nem um pouco com coisíssima alguma.
De nunca ter sentido o Cheiro. O Cheiro Maldito que impregna minha janela nesse momento. Entra pelas fossas nasais e toca um sino estridente no meu cérebro, sacode cada refeição da semana que ainda insiste em permanecer nas reviravoltas das minhas tripas. O Cheiro que penetra nas minhas roupas estendidas no varal, que me acorda no meio da noite suando frio. Que atrai todo tipo de mosca esverdeada que eu nunca vi. O Cheiro. Queria nunca ter sentido. Mas depois que senti... Depois que entendi sua procedência, ele nunca mais me deixou. Como se a essência demoníaca tivesse ido morar bem embaixo do meu nariz.
De um dia pro outro, comecei a me dar conta da presença do Cheiro. No caminho pro trabalho. Na Igreja. Na mesa do bar. Em toda parte. Devagarzinho, o Cheiro passou a se tornar uma fascinação minha. Era mau agouro não senti-lo de manhã antes de sair de casa. Eu tinha um mal estar quando não o sentia por muito tempo. Pensava nele no almoço. Dormia com ele embalando meus sonhos escuros. Aos poucos o Cheiro foi se tornando parte do meu ser. Uma extensão da minha alma, sei lá. Era minha obsessão, meu segredo, minha maior preocupação. Meu amor e meu ódio. Fazia esquecer os meus filhos. Da minha ex-mulher. Daquela porrada de conta atrasada.

Só não me fazia esquecer os meninos da rua. De um jeito mórbido que só compreendo agora...o Cheiro também me fazia lembrar deles. O que me leva de volta ao começo do relato. Hoje outro moleque sumiu da rua. Cartolinha sumiu da rua. E ninguém viu. Só eu. E o Cheiro.